Estes são os vídeos utilizados na aula:
Ciência e Cultura
O SER DA AMAZÔNIA: IDENTIDADE E INVISIBILIDADE
Therezinha de Jesus Pinto Fraxe Antônio Carlos Witkoski
Samia Feitosa Miguez
INTRODUÇÃO
Caboclos, ribeirinhos, caboclo-ribeirinhos, seringueiros. O homem
amazônico é fruto da confluência de sujeitos sociais distintos —
ameríndios da várzea e/ou terra firme, negros, nordestinos e europeus
de diversas nacionalidades (portugueses, espanhóis, holandeses,
franceses, etc) — que inauguram novas e singulares formas de organização
social nos trópicos amazônicos. Diferenciada em suas matrizes
geracionais, marcada por dinamismos e sincretismos singulares, a
formação social amazônica foi fundamentada historicamente em tipos
variados de escravismo e servidão. Assim, falar dos povos da Amazônia
requer um (re)conhecimento da grande diversidade ambiental e social
da região, noutras palavras, é preciso tomar como ponto de partida o
desenvolvimento histórico da região. Trata-se de recorrer a uma
antiga (porém atual) indagação: o que é ser da Amazônia ou,
noutras palavras, quais são as consequências do processo de formação
da (suposta) identidade dos seus habitantes no contexto amazônico?
A
Amazônia é (re)conhecida internacionalmente por suas paisagens
exuberantes e continentais, nas quais o homem configura como parte
indissociável, quase imobilizado no âmago da natureza, como se fosse
possível a existência no mundo contemporâneo de uma natureza
intocada. Neste processo, a história do homem na Amazônia é marcada
por silêncios e ausências que acentuam a sua relativa invisibilidade e
velam os traços configurativos da sua identidade. Desse modo,
adentrar o universo identitário dos povos amazônicos implica
considerar um mundo de ambiguidades, trata-se de percorrer caminhos que
se cruzam e se contrapõem, mascaram diferenciações sociais que têm
entravado processos de emancipação social e política.
REFLEXOS INDESEJÁVEIS DA IDENTIDADE: O SER DA AMAZÔNIA
Em primeiro lugar, é preciso entender que os povos da Amazônia
não vivem isolados no tempo e no espaço, pelo contrário, sempre
estabeleceram — e continuam a estabelecer — relações de trocas
materiais e simbólicas entre si, com as comunidades vizinhas e com os
agentes mediadores da cultura, entre o mundo rural e o urbano e a vida
em escala global. A Amazônia nasce e se desenvolve no âmago e nos
dilemas da moldura da civilização euroantropocêntrica. A ideia de que
esses povos sustentam um modo de vida estritamente tradicional não
deve ser considerada, tal como se vivessem de modo estático e
congelado. Suas manifestações culturais e sociais se expandem pelo
mundo urbano e vice-versa, assimilando algumas práticas e rejeitando
outras. Ainda que reproduzam manifestações ditas tradicionais em suas
vidas cotidianas, não podemos afirmar que esses grupos sociais não
estejam inseridos em um processo progressivo de diferenciação e
transformação.
Para compreender esses
grupos sociais é preciso desvendar seu cotidiano, é necessário
considerar o contexto contraditório no qual estão inseridas suas
manifestações e práticas culturais. Entender o modo de vida dos
grupos sociais que habitam a Amazônia não significa apenas conhecer e
descrever a riqueza dos seus recursos naturais, mas, sobretudo,
compreender seus vastos territórios. É preciso perceber que, para
além da paisagem natural, harmônica e romântica, há paisagens
socialmente construídas repletas de contrastes e contradições.
Os
numerosos grupos sociais que habitam a Amazônia desenvolvem um
singular estilo de vida, transmitindo seus costumes e práticas culturais
de geração em geração, sem, muitas vezes, haver um reconhecimento
político de suas existências (1). Cada palavra, cada gesto, cada
pedacinho dessa gente e de seus lugares, quase invisíveis, foram-se
acumulando, revelando uma forma singular de vida que revela o
irrevelável, que exprime o inexprimível.
Diante
das transformações desse fluxo histórico marcado por
continuidades/descontinuidades, foram-se definindo povoados, rotas,
caminhos, habitus e identidades — enfim, territórios. Em face
das misturas e presenças entremeadas nesse vasto território emergiram
diferentes tipos sociais, trabalhadores que, diante das condições
mais adversas, inventaram e reinventaram formas de sobrevivência,
adaptaram-se passiva e ativamente às sutilezas complexas dos seus
múltiplos ecossistemas. A alteração na composição étnica da região
fez surgir não só novos tipos sociais, frutos da mistura social,
cultural e racial, mas também um novo estilo de vida. Embora as
tentativas de eliminar e/ou esconjurar qualquer traço da cultura e
modo de vida indígena tenham sido inflexíveis e avassaladoras, o
resultado não foi plenamente alcançado. O ser da Amazônia permanece imbuído da identidade dos nossos mais antigos ancestrais — os ameríndios da várzea e/ou terra firme.
A
iniciativa de dar visibilidade aos povos amazônicos pressupõe
considerá-los inseridos em um contexto de mudanças históricas,
sujeitos às mesmas dinâmicas que permeiam o sistema socioeconômico e
político-cultural da civilização contemporânea. Trata-se de criar
mecanismos que facilitem e possibilitem a participação desses grupos
sociais nos processos de decisão do poder, de modo crítico e
consciente. Para isso, é preciso fazer da emancipação social um
projeto de todos, construído por todos os cidadãos.
Se
podemos compreender que o homem é produto das condições históricas,
não devemos esquecer que ele é, ao mesmo tempo, produtor da história.
Nesse sentido, o homem amazônico, como de resto todos os homens,
deve ser compreendido como projeto no sentido satreano do termo.
Nessa concepção, necessidade e liberdade são elementos distintos e
complementares intrínsecos do projeto humano. Aqui, para superarmos
as possibilidades de uma razão ainda portadora de resíduos coloniais,
torna-se imperativo reconhecer e ativar a perspectiva de que o
importante não é aquilo que se fez do homem, o importante é aquilo
que o homem fará com o que fizeram dele (2).
INVISIBILIDADE E MODERNIDADE: O QUE É SER DA AMAZÔNIA?
Para Anthony Giddens (3), não podemos afirmar que estamos diante de
um período pós-moderno plenamente instituído, mas perceber que
essa época se configura um tempo em que as consequências da
modernidade se tornaram mais radicais e universais. Embora existam
ordens sociais pós-modernas, não podemos determinar ainda a
existência de uma era pós-moderna, tendo em vista que o
desenvolvimento social atual é marcado por um fluxo civilizatório
assinalado por significativas descontinuidades históricas. Assim,
devemos reconhecer que, no mundo social instituído, coexistem
dimensões de um mundo social pré-moderno, moderno e traços
configurativos emergentes da pós-modernidade.
É
preciso entender as descontinuidades da modernidade como uma espécie
de desenvolvimento desigual e nem sempre combinado da própria
modernidade, ou melhor, como as consequências da própria modernidade.
Contudo, é necessário ressaltar que descontinuidades estão presentes
nas várias fases do desenvolvimento histórico, tecendo pontos de
conexão entre os aspectos da vida moderna e os da vida tradicional.
Os modos de vida produzidos e reproduzidos pela modernidade tendem a
nos afastar dos tipos tradicionais de ordem social, em razão de que
as mudanças engendradas nessas sociedades são mais profundas que em
qualquer outro período precedente.
A
reflexão teórica apresentada por Anthony Giddens (3) nos é muito útil
para entender as consequências da modernidade na construção e
reconstrução de uma suposta identidade regional na Amazônia. Partimos
do pressuposto de que o homem amazônico não está cristalizado no
tempo, apesar de buscar manter suas práticas tradicionais, recebe
influências diversas da sociedade urbano-industrial. Portanto, é
preciso perceber que a descontinuidade tal como proposta por Giddens
também se faz presente na realidade cotidiana dos povos da Amazônia.
Para
quem se permite mergulhar no universo amazônico, deve compreender
que essa realidade não é homogênea e nem uniforme, pelo contrário,
mascara relações sociais diferenciadas e rejeições. Aqui se torna
necessário retomar o processo histórico de construção e desconstrução
do sujeito social de múltiplas identidades. Tal como afirma Bauman
(4), as identidades são flutuantes, se algumas delas lhes são
lançadas desde quando você nasce, pelas pessoas a sua volta, outras
são escolhidas e determinadas por você mesmo, em outras
circunstâncias sociais. A identidade não é sólida, mas líquida,
depende dos caminhos percorridos, das relações de pertencimento,
sobretudo, para aqueles marginalizados da globalização, envolvidos
nas consequências desastrosas de um projeto frustrado de colonização.
Nesse oceano de acontecimentos, a identidade deve ser percebida como
uma tentativa constante em refazer e reinventar sua própria história.
Desse modo, não podemos identificar
um ou outro período ou contrastá-los, a ideia é desconstruir,
perceber que a história, mesmo quando compreendida como totalidade,
sempre se apresenta como algo inacabado e indeterminado – a história
deve ser compreendida como unidade em sua organização e
transformação. Assim, é preciso perceber que essas descontinuidades
envolvem e estão envolvidas nos ritmos das mudanças – a modernidade é
por natureza multidimensional no âmbito das instituições.
Se,
em outros momentos, as instituições sociais eram fundamentais para a
garantia de tradições e costumes, reconhecemos neste momento que as
instituições também estão inseridas nesse processo de
descontinuidade, de transformação das suas práticas e manifestações.
Sem dúvida, a igreja e a família, por exemplo, assumiram um papel
fundamental na formação das comunidades na Amazônia, garantindo a
sustentação das relações de troca material e/ou simbólica do homem
interiorano na Amazônia. Embora, essas instituições ainda cumpram o
papel de cultivar relações comunais do homem amazônico, compreendemos
que essas relações estão se transformando substancialmente, uma vez
que estão sendo contagiados por novos habitus e interesses da sociedade envolvente.
Além
disso, como afirma Giddens, o dinamismo da modernidade desloca o
espaço através do tempo. Na modernidade o espaço é "arrancado" do
tempo, as pessoas podem estar localmente distantes uma da outra, mas
não deixam de receber influências entre si. O lugar adquire uma
condição fantasmagórica, ele pode não estar visível, mas permanece
moldando as vidas das pessoas. Esse caráter desencaixado da
modernidade garante a expansão, cada vez maior, das possibilidades de
mudanças, ligando o global ao local e o local ao global na vida
cotidiana.
Na Amazônia, como de
resto na Terra, as condições naturais são imperativas, mas não sem as
mediações da cultura objetivada em práticas sociais e modos de vida
que as superam. Aqui, não podemos deixar de mencionar que as
possibilidades de mudanças estão em todas as partes, o acesso a
informações e tecnologias garante uma era de transições, de
separações e de fusões. Essas diferenciações ocorrem de modo gradual e
interno, algumas são assimiladas e outras são rejeitadas. Ambas
as possibilidades fazem parte das escolhas e dos interesses que, para
quem se atreve em entender, logo abandona a ideia romântica do que é ser da Amazônia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em meio a inúmeras tentativas de progresso econômico à custa dos
ricos potenciais existentes na região amazônica, paira a incerteza do
ser da Amazônia. Entre tantos projetos implantados em
diferentes localidades da região, sempre esteve a presença do homem
amazônico, apoiando projetos políticos enganosos e fantasiosos,
motivados pela eterna cobiça de acumular fortunas e riquezas
inatingíveis. É de posse dos pequenos e indispensáveis fragmentos da
política que o homem amazônico construiu e constrói suas concepções
e perspectivas de vida; a cada novo momento, desse cenário complexo,
renasce a esperança de melhores condições de habitação,
escolaridade, saúde, renda etc.
É
preciso garantir o devido respeito à natureza vulnerável e ao modo
dos seres da Amazônia, das suas potencialidades idiossincráticas. As
ações gerenciadoras dos governos devem ter convergência para o homem
—, figura central desse processo — ajudando-o a desenvolver-se no
campo de suas possibilidades. O homem da Amazônia não pode mais ficar
abandonado à beira dos caminhos, à beira das estradas, às margens
dos rios, à espera das novas rotas dos projetos de desenvolvimento
que não os consideram como sujeitos portadores de história. A
responsabilidade é de todos. Segundo Darcy Ribeiro (5), é preciso
enfrentar lucidamente esses problemas, concatenar as energias e
usá-las politicamente, uma vez que o povo brasileiro já pagou um alto
preço em suas lutas históricas e sangrentas.
Por fim, esbarramos novamente no dilema: o que é ser da Amazônia,
quais são as consequências e resultados do processo histórico de
colonização e desenvolvimento na identidade da população local? A
eterna tentativa de integrar a Amazônia ao restante do Brasil revela
não só uma perspectiva geopoliticamente equivocada, mas, sobretudo,
um afastamento da diversidade étnica e cultural que precisa ser
entendida e admitida na sua singularidade. Uma intenção em não se
identificar o homem amazônico com o inferior e/ou primitivo.
Apesar
disso, podemos afirmar que, durante o processo de colonização das
sociedades ameríndias e do surgimento dos novos grupos sociais, nem
mesmo a natureza foi um fator que se manteve constante. Embora
apresentem grandes diferenciações entre si, há um aspecto que se
manteve comum entre os grupos sociais da Amazônia — a sua relativa
invisibilidade social e política. Atualmente, essas sociedades
representam os antagonismos resultantes de um projeto de colonização e
formação de uma identidade nacional. Essa colonização se deu de modo
diferenciado, em vários momentos da história, por vários grupos
sociais.
No entanto, não basta garantir
condições de visibilidade para essas sociedades, é preciso
reconhecer que elas possuem uma diversidade de práticas e
manifestações culturais que não podem ser homogeneizadoras. Tampouco
utilizadas em discursos ambientalistas e ecológicos para retratar uma
realidade mascarada em uma identidade regional que não leva em
consideração as ambiguidades e antagonismos sociais. Pois,
independente da denominação utilizada para retratar o sujeito social
da Amazônia, devemos buscar, em primeiro lugar, o reconhecimento da
importância de participação dessas sociedades no processo de formação
política e identitária local.
Entendemos assim que ser da Amazônia não implica apenas uma localização no espaço, uma localização geográfica. Ser da Amazônia
implica em um comprometimento político e social, que não se reduz à
descrição e análise de modos e práticas culturais tradicionais e
específicas da região. Esse comprometimento está para além do local
de nascimento ou pertencimento, faz parte de um interesse comum em
(re)inventar os percursos de uma história marcada pela desigualdade e
inferiorização, imposta por um projeto civilizatório que tem como
marca a domesticação das múltiplas alteridades amazônicas.
Therezinha de Jesus Pinto Fraxe
é professora doutora do Departamento de Ciências Fundamentais e
Desenvolvimento Agrícola da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Trabalha nos programas de pós-graduação em ciências do ambiente e no
de sociologia, além de atuar como coordenadora e pesquisadora do
Núcleo de Socioeconomia da Ufam.
Antônio Carlos Witkoski é professor doutor do Departamento de Ciências Sociais da Ufam. Trabalha no programa de pós-graduação em sociologia e no de sociedade e cultura na Amazônia.
Samia Feitosa Miguez é graduada em ciências sociais e mestranda em sociologia pela Ufam. É pesquisadora do Núcleo de Socioeconomia da mesma universidade.
Antônio Carlos Witkoski é professor doutor do Departamento de Ciências Sociais da Ufam. Trabalha no programa de pós-graduação em sociologia e no de sociedade e cultura na Amazônia.
Samia Feitosa Miguez é graduada em ciências sociais e mestranda em sociologia pela Ufam. É pesquisadora do Núcleo de Socioeconomia da mesma universidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Fraxe, T. J. P. Cultura cabocla/ribeirinha: mito, lendas e transculturalidade. São Paulo: Annablume, 2004.
2. Lapouge, G. "O rosto misterioso de um irmão". In: Sartre, J. O testamento de Sartre. Trad. Agência O Estado. Porto Alegre: L&PM Editores. 1981.
3. Giddens, A. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991.
4. Bauman, Z. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2005.
5. Ribeiro, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Adams, C. Sociedades caboclas amazônicas: invisibilidade e modernidade. São Paulo: Annablume, 2006.
Santos,
B. S. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social.
Trad. Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007.
Sartre, J. O testamento de Sartre. Trad. Agência O Estado. Porto Alegre: L&PM Editores. 1981.
Witkoski, A. C. Terras, florestas e águas de trabalho: os camponeses amazônicos e as formas de uso de seus recursos naturais. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007.
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